quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Uma inclinação, sem roupa

Uma inclinação de 3%. Isso. A medida certa do deslocamento face à monotonia e à tirania do senso comum. Vale o que estivermos dispostos a cambiar. 3%. Os números têm o poder de exprimir certos sentimentos. "Esta rua tem uma inclinação de 3%". O discurso dá-se a ares de certeza, embora a informação passe com a leveza do vento fresco que acompanha os chuviscos. Ao descer em errância, vindo do Saldanha em direcção ao Largo Dona Estefânia, um homem apanha quem o possa ouvir, seguro debaixo do seu chapéu-de-chuva. Deve ter quase 60. Óculos redondos, dentes de baixo algo sujos. A cigarrilha entre os dedos da mão direita, que tem toda a legitimidade ao assumir-se continuação de inúmeras outras, pode muito bem ser a causa. Diz isto com convicção, a sorrir. "Esta rua tem uma inclinação de 3%". Como uma fita de bobina cinematográfica truncada e cuja continuidade é assegurada através de uma junção feita com fita adesiva, o discurso salta para outro tema - sem que notemos o salto. "Estava ali um tipo a dizer que, por muito bem vestido que ande um homem, não há nada como uma mulher despida". E dá uma gargalhada certa, antes de continuar caminho.

Etiquetas: ,